Aspecto yóguico da iniciação no budismo esotérico Shingon

Aspecto yoguicoPor: Ricardo Mario Gonçales
Professor Assistente
Doutor do Departamento de História
da Universidade de São Paulo

SINOPSE:

A escola Shingon é a mantedora, no Japão, das doutrinas e práticas do Budismo Esotérico, que no Tibet e no Himalaia são conservadas pelo Lamaísmo.

O objetivo último da Escola Shingon é proporcionar ao homem, aqui e agora, uma experiência concreta de encontro com o Real, que está ao mesmo tempo dentro e fora dele. Para se chegar a essa experiência é necessário um treinamento, denominado Sanmitsu Yuga (Yoga dos Três Segredos). Esse treinamento, verdadeiro Yoga Integral, compreende:

a) Segredo do Corpo (treinamento físico: postura sentada correta, controle da respiração e realização de Mudrās ou gestos simbólicos com as mãos).

b) Segredo da Palavra (treinamento da palavra através da recitação de Mantras).

c) Segredo da Mente (obtenção do Samādhi ou plena concentração através da visualização de formas simbólicas, contemplação de imagens búdicas, Maṇḍalas, psico-cosmogramas, etc).

O presente trabalho descreve a experiência do autor com esse treinamento, no mosteiro Shingon Chishaku-in de Kyoto, de 7 de Janeiro a 4 de Março de 1973.

INTRODUÇÃO

Este trabalho se baseia numa experiência concreta de iniciação esotérica vivida pelo seu autor no Mosteiro de Chishaku-in de Kyoto, sede central do Ramo Chizan da Escola de Shingon – de Budismo Esotérico do Japão, de 7 de Janeiro a 4 de Março de 1973.

A escola Shingon mantém no Japão as doutrinas e práticas do Budismo Esotérico Vajrayāna do Raio ou do Diamante, que são também conservadas no Tibet e no Himalaia dentro do chamado Lamaísmo. Essa escola, introduzida no Japão no século IX pelo Mestre Kukai ou Kobo Daish, tem como meta suprema uma experiência direta com o Real, imanente e transcendente em relação ao homem. O Real é simbolizado pela figura de Maha Vairocana, o Buda  Cósmico. A integração do homem com o Real o converte em Buda, ou Desperto. O primeiro homem a alcançar essa meta foi Śākya Muni, o fundador do Budismo, que ensinou vários métodos, ou seja, várias técnicas de Yoga para que todos os homens pudessem alcançar a mesma experiência.

Segundo a filosofia budista, todas as nossas ações, palavras e pensamentos engendram conseqüências, que podem ser boas ou más, conforme a natureza de suas causas. É a chamada Doutrina do Karma. Entretanto, antes de ter uma experiência de encontro com o Real, todas as ações, palavras e pensamentos do homem pertencem ao domínio do relativo. As ações mais virtuosas, do ponto de vista do homem, não são mais que tentativas arrogantes de um ego ignorante e tolo, mas desejoso de se impor e de seauto afirmar, quando vistas do ponto de vista do Real. Todo o Karma, bom ou mau, pertence ao mundo do relativo.

O Real, como o homem, também se manifesta através da ação, da palavra e do pensamento. Entretanto, como poderemos nós, seres imersos no mundo da ignorância, conhecer a ação a palavra e o pensamento Real, do Absoluto? Enquanto nossos olhos não se abrirem para a Suprema Sabedoria, constituirão um segredo. Daí a expressão “Três Segredos”.

O Yoga dos Três Segredos visa transformar oKarma (atividade do relativo) em Segredo (atividade do Real, nos três níveis supramencionados). É, pois um Yoga Integral, que trabalha ao mesmo tempo o corpo, a palavra e a mente. Esse trabalho é feito através de uma série de exercícios em que os símbolos, mediadores entre o relativo e o Real, exercem papel fundamental.

Esquematizando, teríamos o seguinte:

YOGA DOS TRÊS PODERES

MUNDO DO RELATIVO

EXERCÍCIOS E SÍMBOLOS (Mediadores)

MUNDO DO REAL

Karma da ação ou do corpo

Controle da postura (Āsana)

Segredo da Ação ou do Corpo

MUNDO DO REAL

EXERCÍCIOS E SÍMBOLOS (Mediadores)

MUNDO DO RELATIVO

MUNDO DO RELATIVO

Controle da respiração (Prāṇāyāma) Gestos Simbólicos com as mãos (Mudrās )

MUNDO DO RELATIVO

Segredo da Palavra

Recitação das palavras Simbólicas (Mantras)

Karma da Palavra

Segredo do Pensamento

Samādhi  (Integração plena da mente com o Real) Contemplação de formas simbólicas diversas, como a lua, o lótus os Maṇḍalas, etc.

Karma do Pensamento

O candidato ao grau de Ācarya , isto é, de Mestre, deve submeter-se a uma iniciação durante a qual deverá dominar o Yoga dos Três Segredos. Finda essa iniciação, receberá um Abiśeka ou consagração solene, em que será iniciado dos derradeirosMudrās  e Mantras  secretos. A iniciação é chamadaPrayoga (Yoga preparatória ou pré-Yoga), já que ela é um prelúdio do Abiśeka, ou seja, da iniciação suprema. Há vários sistemas para se realizar oPrayoga. O Mosteiro Chishaku-in e todo o ramoChizan empregam o sistema Samb-in, organizado pelo Ācarya Rigen Daishi (Séc. IX). Esse sistema preconiza 56 dias de treinamento, durante os quais são realizados cinco Sādhanas (exercícios), distribuídos da seguinte maneira:

1. Sādhana purificador (Raihaigyõ)…………………………….2 semanas
2. Sādhana básico (Juhachidõ)…………………………………..3 semanas
3. Sādhana do Maṇḍalas da Sabedoria (Kongakai)…….1 semana
4. Sādhana do Maṇḍalas da Compaixão (Taizakai)…….1 semana
5. Sacrifício Vádico do Fogo (Goma)……………………………1 semana

Total…………………………………………………………………….. 8 semanas
……………………………………………………………………………..56dias

Descrevemos, neste trabalho, os principais aspectos dessa iniciação, destacando seu caráter de treinamento Yóguico.

I – DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

O neófito, antes de mais nada, precisa encontrar umĀcarya ou Mestre. Este dispensará ao neófito uma ordenação preliminar como noviço budista e ensinar-lhe-á a rotina da vida no Mosteiro. Quando o neófito estiver já familiarizado com a vida budista, o Ācarya o preparará para o Prayoga.

Em primeiro lugar, sob a direção do próprio Ācaryaou de um instrutor competente designado pelo mesmo, deverá o neófito preparar o altar no qual serão realizados os diversos Sādhanas .

O altar é um estrado, sobre o qual são alinhados vasos para oferendas, sinos e diversos cetros simbólicos (Vajras). Diante do altar são pendurados quadros com as imagens das divindades a serem cultuadas durante os Sādhanas .

A seguir, o Ācarya ensina ao neófito as regras de vida durante a realização do Prayoga:

1. Não sair do recinto do Mosteiro;
2. Não se entregar a conversas fúteis;
3.Purificar-se jogando baldes de água pela cabeça abaixo todas as manhãs e todas as vezes que for ao banheiro;
4.Manter alimentação rigidamente vegetariana;
5.Abster-se de leituras profanas, rádio, TV, etc;
6.Zelar pela limpeza de sua cela, do recinto das práticas do altar.

Depois, o Ācarya ensina ao neófito como prepara diariamente as oferendas diversas a serem colocadas no altar (flores, incenso, velas, água, alimento, etc) e o prepara para realizar o Sādhanapurificador.

II – SĀDHANA PURIFICADOR (Raihaigyõ)

É o exercício mais penoso de todo o sistema. Visa purificar o neófito do mau Karma acumulado antes de sua iniciação, preparando assim seu físico e sua mente para a integração com as divindades (Símbolos do Real) dos Sādhanas  posteriores. Compreende 108 prostrações completas, acompanhadas da recitação de fórmulas de purificação e seguidas por leituras de mantras. Durante cada dia devem ser realizados trêsSādhanas  (um de madrugada, outro pela manhã e outro à noite). Temos assim 324 prostrações diárias. Durante os três primeiros dias o corpo sofre horrivelmente. As pernas e os quadris doem de maneira insuportável. Quando o neófito tenta andar, cambaleia como um bêbado, antes do término doRaihaigyõ, o Ācarya ensinará ao neófito a prática doSādhana básico (Juhachidõ).

III – SĀDHANA BÁSICO (Juhachidõ)

O Sādhana básico visa preparar o neófito para a realização das práticas de rotina que um Ācaryadeve efetuar diariamente, durante toda sua vida. É um trabalho de integração com uma determinada divindade, através da realização de seus Mudrās (gestos secretos), recitação de seus Mantras e contemplação de seus símbolos.

Estabelecimento de defesas psíquicas em torno do recinto para evitar interferências durante a prática.

Invocação da divindade. O Sādhana compreende as seguintes fases:

a)      Purificação do praticante, do recinto e das oferendas.

b)      Fusão da divindade com o praticante.

c)      Apresentação das oferendas à divindade.

d)      Realização dos Mudrās , contemplação dos símbolos e recitação dos Mantras da divindade.

e)      Oferendas finais, dissolução das barreiraspsíquicas do recinto e despedida da divindade.

A divindade cultuada no Sādhana básico varia conforme o sistema. No sistema Samboin cultua-se uma forma do Bodhisattva Avalokiteśvara de nomeCintāmaṇī (Nyorin Kannon), símbolo da CompaixãoBudica que vai ao encontro dos seres imersos na ignorância, perdidos nos diversos planos do mundo do relativo.

IV – SĀDHANAS  DOS DOIS MAṆḌALAS

Um dos elementos fundamentais do treinamento do Budismo Esotérico é a utilização do Maṇḍalas. OMaṇḍalas, como bem definiu o Prof. GiuseppeTucci, é um psico-cosmograma, isto é, uma representação simbólica do Real, em seus dois aspectos, imanente e transcendente. Os Maṇḍalasconstituem uma espécie de mapa ou roteiro para aquele que tenta a Grande Viagem ao mundo interior.

O Maha Vairocana-Sutra, um dos textos fundamentais do Budismo Esotérico, afirma que a Realização Búdica consiste em “cada um conhecer a essência Real de sua própria mente”. Aquele que conhece em profundidade sua mente conhece também a vida Universal em sua essência, pois as duas coisas são no fundo uma só. O Microcosmo (homem) é idêntico ao Macrocosmo (Universo), o imanente é o próprio transcendente. Daí o duplo significado do Maṇḍalas, que representa ao mesmo tempo o mundo interior do homem e o Absoluto manifestado no Cosmo.

A Escola Shingon utiliza dois Maṇḍalas principais:

Taizõkai Maṇḍalas e Kongõkai Maṇḍalas

Ambas são complementares e, no fundo, equivalentes uma á outra. Cada uma delas expressa o mesmo Real de um ponto de vista um pouco diferente da outra. Esquematizemos os principais atributos de cada um dos dois Maṇḍalas:

TAIZÕKAI MAṆḌALAS

1.      Maṇḍalas da Matriz Cósmica

2.      Expressa o aspecto feminino do Real

3.      Expressa o Real em si

4.      Expressa a Compaixão

5.      Expressa o mundo interior

6.      Expressa o mundo da matéria

7.      Símbolo principal o lótus, flor que simboliza Unidade da Existência

8.      Simbolizando – também o útero da mulher

9.      Equivale ao Yin (principio feminino) da filosofia chinesa.

10.  Equivale aos Upayās (métodos de trazer o Real ao nível de compreensão do homem comum)

KONGÕKAI  MAṆḌALAS

1.      Maṇḍalas do raio ou do Diamante.

2.      Expressa o aspecto masculino do Real

3.      Expressa a facilidade que permite ao homem captar o Real

4.      Expressa a Sabedoria

5.      Expressa o mundo interior

6.      Expressa o mundo da mente

7.      Símbolo principal; o vajra, cetro que representa a iluminação ou Sabedoria Búdica

8.      Simbolizando também o órgão sexual masculino

9.      Equivale ao Yan (principio masculino da filosofia chinesa)

10.  Equivale ao conhecimento do Real em si.

Depois de interiorizar o Sādhana básico, o neófito deve meditar sobre os dois Maṇḍalas e vivenciar o conteúdo dos mesmos através da prática dosSādhanas  adequados. Os Sādhanas  possuem a mesma estrutura do Sādhana básico, enriquecido com os Mudrās  e os Mantras da divindade de cada um dos Maṇḍalas e com meditações especiais sobre os Chakras.

Antes de entrar em contato com o Real, o praticante deve exercitar-se para conseguir captar sua essência. Assim, principia ele pelo Sādhana relativo ao Kongõkai Maṇḍalas e realiza em seguida o doTaizõkai Maṇḍalas.

V – O SACRIFÍCIO VÉDICO DO FOGO (Goma)

Terminado o treinamento com os Sādhanas relativos aos dois Maṇḍalas, praticamente o neófito já está apto a penetrar na Câmara Secreta onde receberá o Abiśeka, convertendo-se ele próprio numĀcarya. Entretanto, para que o Abiśeka não se resuma numa simples formalidade, para que realmente acarrete uma transformação profunda na mente do neófito, este deverá ainda, por uma semana, praticar o Sacrifício Védico do Fogo (Goma), sob os auspícios de Fudõ Myõõ, divindade protetora dos Yogins budistas.

O Goma do Budismo Shingon é a derivado doHoma, o antigo sacrifício do fogo da Índia Védica. É um ritual complexo, durante o qual inúmeras oferendas são queimadas no altar em homenagem à divindade que está sendo cultuada; durante oPrayoga é sempre Fudõ Myõõ, forma budista do Deus Śiva do Hinduísmo, protetor dos Yogins. Durante o ritual o neófito deve praticar as seguintes meditações.

1. O fogão onde é queimada a lenha equivale à boca da divindade cultuada e a mente do próprio neófito.

2. A lenha representa as imperfeições do homem, o ferro para apanhar a lenha simboliza a Moralidade e a Concentração, com as quais o homem disciplina suas paixões, e o fogo é a Suprema Sabedoria, que consome as ilusões e dissipa as trevas da ignorância.

A realização do Goma é a fase mais trabalhosa da iniciação, não só por ser o ritual extremamente longo, mas também por exigir do neófito longas horas destinadas ao preparo da lenha e das oferendas, a limpeza do altar, que fica todo sujo de azeite, cinzas e carvão depois do ritual, etc.

VI – O ABIŚEKA SUPREMO

Terminada a cerimônia de iniciação do Goma, o neófito está apto a ser iniciado nos Mistérios Supremos. Ao chegar o dia determinado para oAbiśeka, os acólitos o conduzem a uma câmara especial, onde desde seu hábito comum e enverga vestes brancas especiais. Depois, é conduzido a uma câmara escura, onde o Ācarya o aguarda para a transmissão dos derradeiros Mistérios. Com a cabeça envolta num pano espesso, para que não veja nada do que está acontecendo ao seu redor, o neófito desaparece nas trevas da câmara de iniciação, puxado elas mãos por um acólito. O  que  acontece entre o neófito e a
Ācarya, no interior da câmara, não pode ser revelado. Quem quiser conhecer o Supremo Mistério deverá submeter-se primeiro ao Prayoga, sob direção de um Ācarya competente.

VII – CONCLUSÕES

Ao sair da Câmara Secreta, o neófito já esta transformado em Ācarya, em Mestre, podendo instruir e consagrar discípulos. A longa e penosa iniciação por ele vivida representam, é claro, o trabalho de formação de um especialista. O homem comum, evidentemente, não precisará submeter-se a iniciação completa, a menos que deseje converter-se também num mestre. Existem iniciações simplificadas para os leigos e também práticas simples, que colocam as técnicas do Yoga dos Três Segredos ao alcance de qualquer pessoa, mesmo não iniciada, como, por exemplo, a Contemplação do Disco Lunar (Gachirinkan) e a Contemplação da Letra A (Ajikan).

Mas o mais importante de tudo, tanto para osĀcaryas como para os leigos, está em trazer a vivencia do Yoga dos Três Segredos para a vida cotidiana, em converter as ações, palavras e pensamentos de todos os dias em manifestações autenticas do Real. O verdadeiro Yogin da Escola Shingon não é aquele que se limita a recitar Mantrase realizar Mudrās  no altar apropriado, mas aquele que, em todos os momentos, revela autenticidade e profundidade em suas ações, palavras e pensamentos.

Templo Kokubun-ji
Província de Kochi, 18/7/73.

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